Postado originalmente por
Picinin
Quando você fala que "aquilo é sim pra ser interpretado literalmente como ordem divina segundo a teologia cristã" você está falando exatamente que " todo religioso é um fanático que aceita literal e acriticamente os textos sagrados".
Qualquer texto simples permite interpretações. O Velho Testamento, que é uma compilação de textos supostamente escritos entre 3.500 e 2.500 anos atrás, por dezenas de autores diferentes, em uma língua que foi praticamente extinta, e cujo mais antigo documento escrito data de 2000 anos atrás (ou seja, pelo menos uns 500 anos depois que ele foi criado), vai permitir INÚMERAS interpretações, até porque é evidente que uma compilação tão heterogênea vai ter inúmeras contradições internas. E, dentro da teologia cristã, existem também inúmeras correntes com visões diversas sobre as escrituras sagradas. Mesmo a ICAR, que é a mais centralizada das autoridades eclesiásticas, está constantemente interpretando e reinterpretando os textos sagrados desde que ela surgiu.
Ao contrário do que você sugere, é impossível, mesmo para um ateu com profundo conhecimento linguístico, extrair uma mensagem unívoca da leitura literal da Torá. No Novo testamento, isso fica um pouco mais fácil, mas mesmo assim existirão diversas contradições que deverão ser interpretadas.
Portanto, essas "racionalizações e desculpas", que você fala com um certo desprezo, são na verdade o que permite que as religiões possam adaptar seus valores - e dá pra extrair um conjunto mais ou menos definido de valores que compõem as morais dessas religiões - às mudanças históricas e sociais. E é exatamente aí que está o problema do islã, que em grande parte lê literalmente os textos sagrados. Essa flexibilidade na interpretação de textos sagrados é altamente benéfica, e deve ser louvada, e não criticada, IMO.
Eu não neguei que dá pra fazer o mesmo com o Corão, eu ressaltei isso aqui diversas vezes. Mas certamente vai ser mais difícil. É só comparar Maomé e Cristo pra ver que há uma diferença moral significativa entre as duas religiões. Maomé era um cara extremamente mundano, um líder político e militar. O outro era um filósofo e líder espiritual pacifista, que recusava o poder. Não dá pra negar que há uma diferença ética enorme entre os dois, e que uma é muito mais propensa a se adaptar aos valores modernos que a outra.