"Numa daquelas tardes de sol e calor de quase verão, eu tava de boa lendo uma Cardplayer. Nesses dias só entravam na banca os clientes religiosos e alguns fumantes ansiosos. Uma tiazinha ou duas querendo um Coquetel, aquelas palavras-cruzadas, pra fazer na praia enquanto tomam sol e era isso. Sem internet no único PC que eu tinha disponível (era o PC do caixa), eu passava o tempo lendo qualquer coisa. Opção não faltava.
Quando o cara entrou na banca, eu já tava me esticando pra pegar um maço de Marlboro Light. Depois de um comentário ou dois sobre o calor e as gata circulando de biquini, a escoradinha no balcão denunciou que ele ia ficar ali por mais algum tempo.
Eu já tinha visto ele várias vezes. Tinha aparecido lá com a mulher e um filho pequeno, sempre pelo Marlboro.
Simpático, trocava ideiazinha de boa, mas sempre de passagem. Nesse dia, as olheiras fundas ganharam mais destaque naquela cara de cheirador.
"Tá sozinho aí?" me pergunta o fera.
Eu tava sussegado, se desse merda não ia sobrar pra mim. "Aham"
"Me diz uma coisa, como que são as vendas no cartão aqui, sai muito?" apontando pra máquina que ficava no canto do balcão.
Nessa hora já tinha me ligado qual era. Rolou toda uma história, o cara era bom. Falou dum bróder que tava tirando 500 reais por semana, num posto por ali. Tinha outro, num restaurante que no fim de semana chegava a tirar 200 por dia. Isso tudo acompanhado dum papinho quase comunista: "Os donos do cartão nem perdem nada, tem ressarcimento. Quem perde mesmo são os bancos, que tão cagando dinheiro de tanto roubar a gente. Eles até tem uma porcentagem destinada pra isso, é sussegado."
Ele até me mostrou a maquininha. Menor que um celular, era só passar o cartão ali, ascendia a luzinha verde e já era. Se visse a senha, ganhava cinquentão.
O cara me contou até sobre a tecnologia que rolava pra clonar, todos os cuidados que ele tomava, as diversas técnicas do ramo e como que ele tava no processo de recrutamento. Falou na moral que tava formando a própria quadrilha.
Isso tudo aconteceu em 2009. O cara passou na banca outras vezes, viu que eu raramente ficava sozinho.
Quando me encontrou de boa denovo, deu uma insistida no papo de não tá prejudicando ninguém, só o banco e blablablá. Mas ficou tranquilo quando neguei. Ele sabia que eu sabia que ele sabia onde eu trabalhava e, muito provavelmente, onde morava. Me passou até o celular, caso mudasse de ideia.
Fiquei alguns dias pensando sobre isso. Cogitei até em aceitar, subir na hierarquia da quadrilha, chegar no peixe grande e entregar todo mundo. Papo de filme mesmo.
Passada a ilusão, me recolhi a minha impotência e até torcia pro cara não cair, com medo de isso dar margem pra ele pensar que eu tinha dedurado.
Fiquei pouco tempo na banca. Antes do verão a merreca do poker já era melhor e saí fora.
Ontem à noite bateu uma fome e pedi um Uncle Joe's com a minha gata. Enquanto assistia um Mad Men, toca o interfone. Fui abrir a porta e uma surpresa: o cara ainda tava subindo a escada, mas já tava cumprimentando. Chegou perto, o sorrisão estrategicamente prejudicado denunciava a malandragem.
"Débito ou crédito?" estendendo a maquininha.
"Débito" entreguei meu cartão falando pra passar a metade, e ele ainda comentou: "não tem chip?"
Enquanto a máquina processava, ele começou a falar que tava meio atrasado, que a máquina tava dando problema. Ficou torcendo por alguns segundos até imprimir o comprovante.
Quando entreguei o outro cartão, ele comentou "Esse é chip, né?" e meteu na máquina.
Quando alcançou pra mim digitar a senha, apertei dois dígitos e parei pra pensar; já tava até com o dedão no número 1 pra continuar digitando, quando olhei pro visor. Tava lá, 1500xx. Digitei o 1 e ficou 1500xx1.
Em cima dizia algo do tipo: "Digite o valor". Soltei um "Opa!" meio sem querer e olhei pro cara. Desisti na hora, apaguei tudo, digitei o valor certo, dei enter, digitei a senha e passei a máquina pra ele. Ela não demorou pra soltar o comprovante.
O cara já tava nas escadas denovo quando lançou:
"Falou jogador, bom lanche aí!"
"