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Quanto ao Início da vida humana
Os critérios para o início da vida merecem uma análise mais apurada, especialmente sob uma ótica biológica. Destarte, existem quatro correntes quanto ao início da vida humana, as quais serão mencionadas de forma sucinta:
a) Teoria da fecundação: defende que o início da vida começa com a concepção;
b) Teoria da nidação: defende que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero;
c) Teoria encefálica: defende que o início da vida começa com o início da atividade cerebral;
d) Teoria do Nascimento: defende que o início da vida começa com o nascimento com vida do embrião. Esse critério não condiz com nosso ordenamento jurídico, que concedeu direitos e obrigações ao nascituro, nem com os avanços das ciências biológicas.
A teoria da fecundação permaneceu por longos anos, sendo defendida veementemente até os dias de hoje por algumas facções sociais e religiosas, entretanto, demonstrar-se-á que este entendimento não mais corresponde ao contexto social atual.
Com a utilização de técnicas de reprodução assistida adveio a problemática dos pré-embriões excedentes, que muitas vezes precisam ser descartados pela sua inviabilidade e, por outro lado, podem ser utilizados na pesquisa com células-tronco embrionárias e na clonagem terapêutica para salvar muitas vidas, curando doenças as mais diversas.
Isso porque as células-tronco podem constituir diferentes tecidos do organismo, motivo pelo qual têm sido intensamente estudadas, uma vez que podem tratar infindáveis problemas, como câncer, mal de Parkinson, doenças degenerativas e cardíacas, e doenças neuromusculares em geral. As células-tronco embrionárias, por sua vez, vêm se mostrando mais eficazes que as células-tronco adultas para a cura de doenças cerebrais, a criação de órgãos para transplante e o tratamento de doenças genéticas. [19]
Simultaneamente ao desenvolvimento de tecnologias que necessitam da utilização de embriões, estima-se que existam apenas no Brasil vinte mil embriões congelados, dos quais 90% não possuem qualquer expectativa de vida e poderiam ser utilizados em pesquisas cujo objetivo é salvar vidas e curar doenças, enfim, melhorar a qualidade de vida da população.
A pesquisa com células-tronco embrionárias, portanto, surge como alternativa para a destinação dos embriões excedentes, contudo, as pesquisas sofrem um entrave: os questionamentos acerca do direito à vida, cujos limites, especialmente com relação ao início da tutela jurídica, ainda não estão definidos. Muito se prolatou acerca dessa questão, que agora surge como premente necessidade social.
Há um paradoxo, pois a “vida” de um embrião pode conceder vida, em seu significado atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana, a um enfermo.
Nesse sentido, nosso ordenamento jurídico já considera a vida humana como um bem jurídico superior à vida do embrião, pois permite o aborto quando existe risco de morte da gestante, ainda que futuro, e em caso de estupro da mãe, ao mesmo tempo em que essas justificativas não a eximem do crime de infanticídio, demonstrando implicitamente que a prevalência da vida humana após o nascimento sobre a intra-uterina.
Não poderia ser diferente, pois é evidente que ainda que o produto da concepção seja digno de respeito, pela sua potencialidade para se transformar em uma vida humana, não se pode equipará-lo totalmente aos seres humanos já nascidos.
Não seria razoável, sobretudo diante da concepção de vida digna, que em nome de uma dogmatização do direito à vida e de sua suposta prevalência sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, fosse retirada a oportunidade da ciência de encontrar a cura, seja através das células-tronco ou outras técnicas atuais, para milhares de crianças que possuem distrofia muscular, doença que leva à deterioração muscular e à morte precoce, ou de idosos com doenças degenerativas.
Concomitantemente à problemática dos embriões excedentes, há inúmeros questionamentos sobre a possibilidade de aborto em casos de anencefalia (ausência de cérebro) e síndrome de Patau (em que há problemas renais, gástricos e cerebrais gravíssimos), conquanto alguns tribunais entendam que nesses casos, de grave anomalia do feto, estaria incompatibilizada a própria vida, de modo definitivo. [20]
Verifica-se que, embora a legislação permita o aborto necessário, quando houver risco de vida para a gestante, e o sentimental, em caso de gravidez resultante de estupro, veda o aborto executado
ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves. Apesar disso, entende-se que não há crime de aborto na interrupção da gravidez extra-uterina (como a tubárica e a ovárica), pois a gravidez não pode chegar ao seu termo. [21]
A legislação penal nos parece, no mínimo, incongruente, pois o aborto por ocasião de um estupro acaba por resguardar a dignidade e a integridade da gestante, em especial a psíquica. Tais direitos, porém, são totalmente desconsiderados quando se trata de um bebê anencéfalo ou com graves anomalias cromossômicas, identificáveis desde as primeiras semanas de gravidez, em que se compele a gestante a suportar a gravidez de um embrião com possibilidade diminuta de sobrevida, lesionando sua integridade psíquica.
Não são novos os questionamentos acerca da legitimidade do aborto nesses casos, podendo-se sustentar que, se nem mesmo para a pessoa nascida existe a proteção absoluta da vida, tendo-se em vista os vários casos de justificação para matar, não se poderia proclamá-la para aqueles que ainda não nasceram.
Faz-se necessária uma reflexão profunda acerca do tema, o que afeta a existência de verdades absolutas secularmente consideradas. Pode-se mencionar que a Igreja Católica, que sempre proclamou o valor absoluto da vida humana, por solicitação do Papa, pedira ao biólogo italiano Daniele PETRUCCI a destruição de embriões
in vitro, o que demonstra o quão restrito pode ser o pensamento advindo de dogmas irrefutáveis. [22]
Igualmente se faz necessário lembrar que quando foi introduzida a vacinação contra a varíola, os teólogos discutiram se tal prática deveria ser admitida ou se seria uma violência para com a natureza dos homens e as leis de Deus. [23]
A moral católica tradicional deve ser repensada à luz das conquistas científicas atuais e, como enfatiza Eduardo A. AZPITARTE: "Seria preferível que, se a moral católica chegasse a se enganar, alguma vez o fizesse por animar a um encontro apaixonado com a verdade e o bem e não que, por segurança, como sucedeu em outras situações históricas, ficasse para trás na marcha da ciência e do progresso". [24]
Nessa esteira de entendimento, resta-nos analisar de uma forma mais minuciosa os critérios existentes para o início da vida.
Os defensores da teoria da fecundação normalmente sustentam que a partir da concepção tem-se um novo ser, dotado de patrimônio genético único, fato inverídico, pois existem formações patológicas naturais que, embora possuam um DNA diverso do corpo materno, não podem originar um ser humano, como a
mola hidatídica e o
teratoma. Estas consistem em conjuntos de células com o mesmo DNA do embrião, suscetíveis de crescimento e que jamais poderiam ser considerados como vida humana. [25]
Para fins de cometimento do aborto, a vida intra-uterina se inicia com a fecundação ou constituição do ovo ou zigoto, ou seja, a concepção. Entretanto, tendo-se em vista a ausência de proibição de comercialização, no país, do DIU e das pílulas anticoncepcionais do "dia seguinte", que impedem a implantação do zigoto no útero, deve-se aceitar, para fins penais, sob pena de considerar tais práticas como abortivas, o posicionamento de que a vida se inicia com a implantação do ovo no útero materno (nidação).
Infere-se, pois, por meio de uma interpretação sistemática das normas penais, que não vedam o uso do DIU e de métodos contraceptivos que impedem a fixação do zigoto no útero, que penalmente o ser humano só é considerado a partir da nidação, da fixação do embrião no útero.
Um argumento científico que embasa a teoria da nidação é a segmentação do indivíduo, que consiste no fato de os gêmeos monozigóticos, que possuem o mesmo código genético, separarem-se no momento da implantação do zigoto no útero, ou ao menos, obrigatoriamente, antes que se finde a nidação. Desse modo, só se poderia cogitar de um ser humano quando presente a característica da unicidade e, até que se ultrapassasse essa fase de segmentação, não haveria como reconhecer ambos os seres como uma pessoa.[26]
Quanto ao pré-embrião, não há como atribuirmos a um conglomerado de células potencialmente capaz de gerar a vida, a denominação de vida humana, pela inexistência de um requisito primordial: a unicidade, a individualização. Desse modo, mostra-se insuficiente o DNA para a caracterização do início da vida, do mesmo modo que é irrelevante ter um cadáver a forma humana e a presença de DNA único."