O Corte Das Orelhas
Os países, culturalmente, mais evoluídos já se deram conta do que, realmente, representa um corte de orelhas ou, como gostam os veterinários, conchectomia.
De acordo com o Regulamento de Exposições, adotado pela FCI e, conseqüentemente, pela CBKC, tudo o que não se deseja é um procedimento cirúrgico, com finalidade de modificar a forma, para melhorar o aspeto visual, ludibriando árbitros e espectadores, com um agravante: na mesma relação das faltas desqualificantes gerais, onde consta a falta de um ou de ambos os testículos, estão relacionados os exemplares aleijados ou mutilados.
As justificativas, comumente utilizadas para realizar essa cirurgia é a estética e a beleza ou a tradição milenar, como justificam os cridores do mastim napolitano que recomendam a amputação quase total: "Nossos mastins foram valentes combatentes nas arenas da Roma Antiga e seu ponto fraco era o par de orelhas que, feridas durante o combate, sangrariam até a morte".
Será que os Gladiadores, contra os quais o mastim napolitano combatia, também amputavam seus pontos fracos?
Existe uma outra justificativa, ainda mais incoerente, utilizada no padrão do dogue argentino: pontos vuneráveis de muita dor e de copioso sangramento no caso de ferimento durante uma luta.
"Eu sou inteiramente a favor da otetocmia".
Essa declaração, verbalizada por um cinófilo (indivíduo que gosta de cães) significa, na sua opinião, que para locupletar seu prazer visual, um cão deve sofrer um tratamento pós-operatório, dolorosíssimo, por melhor que se cuide.
É um pós operatório longo. Estende-se dos quatro até, no mínimo, os seis ou sete meses portando, vinte e quatro horas por dia, uma tala ou um capacete bastante incomodo, acompanhado das proibições inerentes ao tratamento, ainda mais incômodas, sem fazer referência aos terríveis e diários curativos, obrigando-o, em muitos casos, o uso de um balde de plástico na cabeça, roubando-lhe, dessa maneira, a melhor parte de sua infância/adolescência. Desde a época em que se inicia a germinação da segunda dentição, estendendo-se por mais de dois meses após completada a dentadura definitiva. Período esse, comparável à idade humana dos oito aos dezesete anos.
Dentre os argumentos que tangem o limiar do absurdo, está um trecho, que faz parte do regulamento de julgamento do padrão do Dogue Argentino: "(El jurado no debe juzgar un Dogo con orejas largas, por lo que debe retirarlo del ring. ...)", como se esse procedimento cirúrgico pudesse, de alguma forma, alterar o potencial genético do exemplar.
Ainda dentro do campo do absurdo, alguns criadores das raças bóxer e dogue alemão, as vezes experientes, exigem um compromisso formal de amputação das orelhas, por parte de seus clientes, alegando que os árbitros em exposições jamais premiarão um exemplar portando orelhas inteiras.
Cabe aqui uma defesa, afinal de contas, também sou árbitro.
Os árbitros poderão avaliar, classificar e premiar somente exemplares que lhe forem exibidos. Se todos os exemplares apresentados em exposições tiverem suas orelhas íntegras, não haverá possibilidade de premiar outra coisa.
Pessoalmente, não posso crer que um árbitro, habilitado a julgar a raça, portanto, conhece o texto do padrão, possa, em sã consciência, emitir uma declaração dessa natureza.
Pessoa alguma, que ame verdadeiramente seus cães, pode defender a idéia de mutilar um dos seus, em troca de alguns troféus, sem falar no risco do insucesso da cirurgia, perdendo, por conseqüência, seu cão para exposições de forma definitiva e na dor que essa cirurgia provoca no seu bolso.
Os veterinários, os únicos que desfrutam alguma vantagem com o corte das orelhas, sofrerão um certo prejuizo com essa tomada de consciência. Entretanto, quando se lembrarem que sua missão é a de cuidar da saúde dos animais, sem dúvida passarão a apoiar a idéia. Permanecerão contra, somente aqueles, cujo objetivo é, apenas, o lucro, sem se incomodar com o sofrimento que acarreta, e que suas habilidades cirúrgicas são as suas únicas qualidades, não se importando confessar incompetência terapêutica. Os competentes ocuparão o tempo utilizado nessas cirurgias, com a cura daqueles que necessitam de seus cuidados profissionais.
Os próprios criadores da raça, em seu país de origem, Alemanha, já se deram conta que, utilizar-se de um recurso cirúrgico, para solucionar um problema de objetivo inalcançável, no âmbito da ciência genética, era mais do que a confissão de despreparo, era um atestado de incompetência, transcrito no Padrão da Raça.
Bruno Tausz
Etólogo
Presidente do Conselho de Cinologia da Confederação Brasileira de Cinofilia
Juíz de Exposição de Todas as Raças
Autor dos livros:
"Linguagem das Cores"
"O Rottweiler"
"Adestramento Sem Castigo"
"Dicionário de Cinologia"