Cito aqui trechos muito bons do livro "A Cidade Antiga", de Fustel de Coulanges, para agregar ao tópico.
Quanto mais leio sobre os antigos, sobretudo os gregos, mais sinto que tudo já foi dito, de uma outra forma (por isso que alguns intelectuais chamam nossa civilização de "Grego-Ocidental". Acho que foi o Whitehead que afirmou, de forma bem exagerada, que a história da Filosofia "não passa de uma sucessão de notas de rodapé da obra de Platão"). Interessante ver como o Coulanges mostra que a Morte foi o elemento fundador da religião e crenças que temos hoje. A leitura dos primeiros capítulos do livro é muito A++. Embora o eurocentrismo seja forte (não tem como não ser, visto que o modelo de civilização, a História e a Filosofia nossa são, praticamente, europeias), é uma baita leitura. Segue aqui alguns trechos:
"Até os últimos tempos da história da Grécia e de Roma, vemos persistir entre o vulgo um conjunto de pensamentos e costumes que, certamente, datavam de época muito remota, pelos quais poderemos conhecer quais opiniões o homem tinha a princípio a respeito da própria natureza, da alma e sobre o mistério da Morte(...) Mas em que lugar e de que maneira se desenrolava essa existência? Acreditavam que o espírito imortal, uma vez livre do corpo, ia animar a outro? Não; a crença na metempsicose jamais tomou raízes no espírito das populações greco-romanas; também não é a mais antiga opinião entre os árias do Oriente, pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença. Acreditava-se então que o espírito ia para o céu, para a região da luz? Nem isso; o pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de época relativamente recente no Ocidente; a morada celeste era considerada apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade. De acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos, a alma não passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos; continuava junto dos homens, vivendo sobre a terra(..)
[...] Os gregos e romanos tinham exatamente as mesmas opiniões. Se deixassem de oferecer aos mortos o banquete fúnebre, logo estes saíam de seus túmulos, e, como sombras errantes, ouviam-nos gemer na noite silenciosa. Censuravam os vivos por sua impiedosa negligência; procuravam então castigá-los, mandavam-lhes doenças, ou castigavam-lhes as terras com a esterilidade. Enfim, não davam descanso aos vivos até o dia em que voltassem a oferecer-lhes o banquete fúnebre(13). O sacrifício, a oferta de alimentos e a libação levavam-nos de volta ao túmulo, e proporcionavam-lhes o repouso e atributos divinos. O homem assim estava em paz com eles(14). Se o morto esquecido era criatura malfazeja, o honrado era um deus tutelar, que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos. Para protegê-los, continuava a tomar parte nos negócios humanos, desempenhando muitas vezes a sua parte. Embora morto, sabia ser forte e ativo. Dirigiam-lhe orações, pedindo lhe favores e auxílio. Quando encontravam um túmulo, detinham-se e diziam: “Tu, que és um deus sobre a terra, sê-me propício(15).”Pode-se avaliar o poder que os antigos atribuíam aos mortos por esta prece que Electra dirige aos manes de seu pai: “Tem piedade de mim, e de meu irmão Orestes; faze-o voltar; meu pai, ouve minha oração; atende meus desejos ao receber minhas libações.” — Estes deuses poderosos não proporcionam somente bens temporais, porque Electra acrescenta: “Dá-me um coração mais casto que o de minha mãe, e mãos mais puras(16).” — Também o hindu pede aos manes “que em sua família aumente o número dos homens de bem, e que tenham muitas coisas para dar.”Essas almas humanas, divinizadas pela morte, eram as que os gregos chamavam de demônios ou de heróis(17). Os latinos chamavam-nas de lares, manes(18) ou gênios, — “Nossos antepassados acreditaram — diz Apuléio — que os manes, quando maus, deviam ser chamados de larvas, e de lares quando eram benfazejos e propícios(19).” — Lemos em outro lugar: “Gênio ou lar, trata-se do mesmo ser; assim o creram nossos antepassados(20).” — E em Cícero: “Aqueles que os gregos chamam demônios nós chamamos lares(21).”Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho deoutros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino"
Adoramos os mortos antes de adorarmos os deuses...
Tânatos como uma das forças que nos movem..